Sobre direitos e tiranos

Ou, porque as restrições aos direitos de ir e vir são inconstitucionais – MESMO em tempos de pandemia.

Mario Bunge, em seu Dicionário de filosofia, define liberdade como a “capacidade de pensar ou atuar a despeito de coações externas” (1999, p. 213). Desde o advento da política na forma em que esta foi constituída no Ocidente, tal capacidade é considerada o principal fundamento da ordem pública: na Antiguidade Grega, eram considerados cidadãos os homens capazes de determinar a si mesmos e dispor de tempo e interesse para participar das discussões públicas. Tais discussões tinham por escopo a proteção das liberdades a serem exercidas em suas vidas privadas, bem como a determinação da forma de convívio dos livres no espaço público.

A distinção entre espaço público e privado marca, portanto, duas espécies de liberdade. Esta diferença, nas línguas latinas, causa certa confusão pelo fato de dois fenômenos distintos estarem definidos pela mesma palavra. No inglês, por exemplo, as liberdades políticas são chamadas liberties, enquanto a liberdade individual é definida como freedom. As liberdades políticas são aquelas que permitem e protegem o exercício da liberdade individual face a ameaças advindas de outros indivíduos ou – e especialmente – do Estado.

Tais liberdades foram consagradas nas cartas de direitos, como a Bill of rights inglesa (1689) ou a americana (1791) e incorporadas às constituições contemporâneas. Estas, ao reconhecerem a soberania popular e a dignidade inata de cada indivíduo, estabelecem proteção às liberdades individuais destes por meio do livre exercício das liberdades políticas. Liberdades como as de expressão, pensamento, religião e culto e locomoção são afirmadas como integrantes da dignidade dos homens e sua observância permite o estabelecimento legítimo da ordem política.

As liberdades políticas podem ser limitadas em situações excepcionais, cuja pertinência requer previsão constitucional e aprovação pela maioria dos indivíduos, diretamente ou por meio de seus representantes. O assentimento popular como limitação do poder do soberano tem uma razão de ser muito clara: as cartas de direito surgiram exatamente para limitar a ação do Estado e impedir o estabelecimento de tiranias. Ou seja: fora do marco constitucional, todas as violações de tais liberdades podem ser caracterizadas como atos ilegítimos.

As liberdades individuais e políticas, no direito brasileiro, encontram-se arroladas no art. 5° da Constituição Federal, enquanto a forma prevista para o estabelecimento de limitações ao exercício de tais direitos encontra-se no título V do mesmo texto. Uma liberdade política fundamental como o direito de livre locomoção dentro do território nacional pode vir a ser limitada apenas por meio da decretação de Estado de Sítio (art. 137 CF) que, na ausência de guerra declarada ou ocupação militar estrangeira, só pode advir do malogro de decretação prévia de Estado de Defesa (Art. 136 CF). A propositura destas medidas é competência exclusiva da União, na pessoa do Presidente da República, e requer aprovação do Congresso Nacional por maioria absoluta para ser efetivada.

A gravidade do quadro pandêmico atual não autoriza outras autoridades políticas a promoverem limitações desta natureza. Se de fato o estabelecimento de um toque de recolher é necessário, este deve ser implementado estritamente pelas autoridades legitimadas pela Constituição e de acordo com a forma e o rito ali previstos. Fazê-lo por portaria, decreto ou qualquer outro ato jurídico unilateral, sob a desculpa de uma pretensa proteção do bem comum, não passa de ato tirânico que marca grave ruptura da ordem constitucional.

Por melhores que sejam as intenções dos responsáveis por este tipo de ato, não se pode esquecer que tiranias, via de regra, surgem a partir de boas intenções que se afirmam em discursos de proteção do bem comum para terminarem na supressão de direitos humanos fundamentais, corroendo assim o fundamento de legitimidade do Estado.

(texto originalmente publicado na Gazeta do povo em 08/12/2020)

Do devido processo legal e científico

Do devido processo legal e científico (ou: vacinação compulsória e restrições de direitos são medidas legítimas face a COVID-19?)

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O Supremo Tribunal Federal, provocado pela Rede na ADPF 754, e pelo PTB e PDT nas ADIs 6.586 e 6.587, se pronunciará acerca da possibilidade de vacinação compulsória ou aplicação de restrições civis àqueles que se recusarem a receber as vindouras vacinas contra a Covid-19. Os defensores da compulsoriedade e das restrições, além de fiarem-se no artigo 3.° III, d da Lei 13.979/2020, afirmam a primazia do interesse coletivo na imunização em massa sobre resistências individuais ao recebimento de uma vacina testada a toque de caixa e que será aplicada antes da plena observação da liturgia de praxe do método científico.

Numa primeira leitura, trata-se de conflito entre interesses individuais e coletivos. Neste caso, a exegese da Constituição não deixa espaço para dúvidas: o interesse coletivo tende a prevalecer. No entanto, mesmo dentre os ministros da Suprema Corte verificamos que o tema não é pacífico: a experimentalidade dos procedimentos adotados e a inexistência de estudos quanto aos efeitos de longo prazo da vacina acenam para a possibilidade de uma saída intermediária: não haveria obrigatoriedade, mas os resistentes estariam sujeitos a restrições civis que iriam de impedimentos no acesso a prédios públicos até limitações no direito de ir e vir.

A Lei 13.979/2020 condiciona a vacinação compulsória à presença de “evidências científicas” (artigo 3.°, §1.°) que não estão disponíveis. Apesar dos promissores porcentuais de imunização obtidos, nada garante a ausência de efeitos colaterais de longo prazo. Além disso, o §2.° do mesmo artigo assegura respeito aos direitos e liberdades fundamentais, dentre os quais destacam-se os previstos no artigo 5.°, II e VII da Constituição, que garantem o princípio da autonomia individual face a lei.

O que está em jogo, portanto, é o estatuto da consciência individual face a decisões do Estado que podem submeter os corpos – instâncias íntimas da dignidade humana e cuja liberdade implica na viabilidade do exercício dos direitos individuais – à participação em processo de imunização que, por mais desejável que possa ser, violará a Lei 13.979/202 e o artigo 5.° da Constituição. Tal artigo, coração de nossa vida civil, consagra a dignidade e o direito à recusa da tirania enquanto fundamentos de nossas liberdades.

A restrição às liberdades individuais só pode ser admitida quando sua imperiosidade restar categoricamente comprovada. Não é o caso, e não o será nos próximos meses: o tempo recorde para o desenvolvimento de uma vacina e utilização em larga escala é de cinco anos. Certamente os esforços envolvidos nas pesquisas contra a Covid-19 levarão a uma redução deste prazo. Ainda assim, a observação dos efeitos de longo prazo da vacina levará tempo. Enquanto este tempo não decorre, o Estado não deveria obrigar os indivíduos a submeterem-se a riscos em nome da promoção de um bem comum que é incerto.

Um dos argumentos contra o utilitarismo, filosofia que sustenta a primazia do bem comum como direito da maioria (a maior felicidade possível para o maior número de pessoas), reside no fato de que a determinação do que é útil é arbitrária e dependente de uma avaliação subjetiva e personalíssima. Antes de aceitarmos a afirmação de que é do interesse da maioria a aplicação de restrições civis aos que se recusarem a receber a vacina, deveríamos, ceticamente, nos perguntar quem são os legitimados a efetuar tal asserção. Revela-se, então, uma questão ainda mais urgente: a das agências e indivíduos que, autorizados pelo que o filósofo Italiano Giorgio Agamben chama de “biopolítica”, subtraem do debate público questões importantes para entregá-las à esfera de poder que, em nome da “ciência”, exige comportamentos abertamente contrários à dignidade humana.

Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. As leis, por sua vez, serão elaboradas de acordo com o devido processo legal. Tais imperativos são claros e deveriam afastar a possibilidade de aplicação de sanções aos que desejam apenas a observância do devido processo científico antes de, docilmente, entregarem-se à sanha imunizante do Estado.

Curitiba, novembro de 2020
Publicado originalmente na Gazeta do Povo, em 17/11/2020