um texto atrasado de Natal
Você já tentou escrever um poema? Ou um conto? Um romance? Eu já fiz um bocado dessas coisas… hoje não muito, até por compromissos acadêmicos e profissionais que me custam um ativo valioso: tempo… mas já passei preciosas horas da minha vida a escrever.
Uma das coisas estranhas na experiência da escrita é que, nos bons momentos de criatividade, os versos, personagens e as ações que ali são narradas correm livremente. São por mim causadas, mas não definidas. Um bom romance, creio eu, requer essa liberdade dada pelo escritor ao personagem e pelo poeta ao verbo.
Não falo de escrita libertária: escrita de tese, seja lá qual for a tese, é literatura desumana e, portanto, desinteressante… Falo da impressão que sinto, quando escrevo, de que aquilo que foi por mim criado me é surpreendente… que me é novo. Falo da sensação de não reconhecer minha presença em minhas criações pois elas, quando bem feitas, praticamente dela prescindem. Sou delas causa eficiente, mas sua forma dá-se na tensão das necessidades da própria história do ser criado e na autonomia que a liberdade criativa exige.
Meus textos são meus, mas de mim são livres. Meus personagens e versos devem toda sua liberdade à minha criação… mas não me devem nada e, a descrevê-los, eles recebem o que merecem conforme sua própria liberdade, que me parece incontestável.
É um paradoxo sim… um paradoxo que deve sua descrição, em escrita, à experiência de quem também escreve. Quem também tem esse hábito entende que é assim… quem não o tem vai ter que passar batido por esse texto ou tomar minhas palavras pelo que elas dizem. Mas, penso eu, esse paradoxo do escritor também tem raízes mais profundas na experiência espiritual dos homens.
O problema é uma das discussões clássicas da filosofia sobre a liberdade humana face ao poder de Deus. Ele aparece de forma mais ou menos acabada na Grécia tardia, pronunciado pelo filósofo Epícuro:
“O paradoxo ataca a crença das 3 qualidades de Deus nos seguintes termos:
1) Enquanto onisciente e onipotente, tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é benevolente.
2) Enquanto onipotente e benevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é onisciente.
3) Enquanto onisciente e benevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é onipotente.”
Uma das consequências da discussão deste paradoxo, apesar de nele não estar descrita, é a de que, face a um Deus onipotente e onisciente, não existe liberdade humana. Deus sabe o que fizemos no passado e o que faremos no futuro. E como ele nos criou, ele o fez para que fizéssemos exatamente o que ele quis .
Deste modo, religiões, moralidade, bondade são pleonasmos: os bons fazem a vontade de Deus, assim como os maus. A vontade é cega e se desdobra na mera completude dos tempos: este é o melhor dos mundos possíveis (pelo caminho de Leibnitz) ou a materialização da vontade universal (pelo caminho de Hegel). Tudo se destina à completude de um projeto político (pelo caminho de Marx) ou então vagamos no jogo cego da vontade (Freud, Schopenhauer, Nietzsche…)
Se não é assim, é pq Deus não pode impor sua vontade e, não o podendo, ele não é Deus. Esse raciocínio tem muitas ramificações conscientes e inconscientes nas ideologias filosóficas e, consequentemente, nas políticas modernas: nos coloca na dicotomia moderna da teleologia totalitária ou do caos niilista. Mas não leva em consideração um aspecto: o do paradoxo do escritor que apresentei aqui.
Um escritor necessariamente encontra-se fora do tempo. O tempo literário de sua criação é parte da criação. Mesmo nas obras realistas mais “duras”, o recorte descritivo do tempo real é qualitativo, e não quantitativo. O tempo e o clima (cronos e kairos) de uma obra são parte desta e o escritor, enquanto causa eficiente de ambos, encontra-se do lado de fora. E ele não pode penetrar neste espaço. A fronteira para o escritor é intransponível: seus personagens ou versos habitam um espaço que, apesar de intimamente pertencente ao escritor, estará para fora dele e será, uma vez criado, sempre impenetrável.
La dentro, o que acontece é um jogo entre as muitas possibilidades contidas na sensibilidade e na capacidade de expressão do artista. E esse jogo começa de forma guiada, segura, planejada… mas em algum ponto do processo a coisa toma vida própria. Os personagens participam do ser de seu criador, mas como ele não se confundem – eles existem, não são (ex-sistere… aparecimento)
Não consigo imaginar Dostoiévski a escrever friamente as palavras de Aliocha ou Ivan… como em um plano de obra, onde haverá uma catarse com hora marcada. Não consigo imaginar Camus a planejar de forma calculada a explosão de Meursault junto ao capelão ou Wilde fazendo cálculos na produção da Balada do Cárcere de Reading… são potencialidades desses seres que, em momentos de genialidade (um acaso feliz, segundo Nietzsche) irrompem na existência e veem à luz como novidade.
A escrita de valor é escrita com sangue… O sangue aqui é espírito. Mas o sangue que corre nas páginas dos romancistas e poetas não é o deles mesmos. E também não é sangue metafórico, força de expressão. Trata-se da espontaneidade das humanidades reais, expondo situações que tocam a profundidade do ser em situações-limite, catarses e paixões. São liberdades, que dependem de um criador mas que agem apesar da criação. O criador não está no tempo para determinar as escolhas e caminhos, embora possa fazê-lo quando assim o desejar…
Do ponto de vista do personagem, o tempo do escritor é a eternidade. E a intervenção da eternidade do tempo só pode ser considerada milagrosa.
E o que isso tudo tem a ver com o Natal?
Nas palavras do teólogo Hans Urs von Balthasar, “O Natal não é um evento na história, mas a invasão da eternidade do tempo”.
O milagre do Natal passa pelo fato de que o Criador deste mundo faz aquilo que o artista criador de mundos não pode fazer: ultrapassa a barreira dos dois tempos que o separam de sua obra. Deus não apenas se faz homem, entrando na cronologia do nosso mundo enquanto personagem, mas também entra no tempo existencial humano ao viver uma vida humana – nascer, ser cuidado por uma família, aprender, crescer em sabedoria, trabalhar, passar por privações, provações e angústias, dores físicas e morais até experimentar a morte. Ele torna-se personagem de si mesmo e, pelo mesmo expediente, torna todos os personagens autores de si mesmos…
A eternidade invade o tempo e o tempo torna-se eterno… tudo isso porque nasceu uma criança em Belém: O próprio Deus se faz personagem de sua obra. Isso confirma a liberdade dos seres existentes nesta obra. E, ao confirmar tal liberdade, transforma o homem sua vida em uma grande aventura: pois apenas onde há riscos e possibilidades reais há aventura de verdade. Alegrias, dores, angústias, gozos… tudo não previsto por um Deus que limita nossa liberdade, mas sim criado por um Deus que, ao fazê-lo, a possibilita.
Curitiba, dezembro de 2018