Sobre a liberdade de Deus e do homem

um texto atrasado de Natal

Caravaggio
O nascimento de Jesus, por Caravaggio

Você já tentou escrever um poema? Ou um conto? Um romance? Eu já fiz um bocado dessas coisas… hoje não muito, até por compromissos acadêmicos e profissionais que me custam um ativo valioso: tempo… mas já passei preciosas horas da minha vida a escrever.

Uma das coisas estranhas na experiência da escrita é que, nos bons momentos de criatividade, os versos, personagens e as ações que ali são narradas correm livremente. São por mim causadas, mas não definidas. Um bom romance, creio eu, requer essa liberdade dada pelo escritor ao personagem e pelo poeta ao verbo.

Não falo de escrita libertária: escrita de tese, seja lá qual for a tese, é literatura desumana e, portanto, desinteressante… Falo da impressão que sinto, quando escrevo, de que aquilo que foi por mim criado me é surpreendente… que me é novo. Falo da sensação de não reconhecer minha presença em minhas criações pois elas, quando bem feitas, praticamente dela prescindem. Sou delas causa eficiente, mas sua forma dá-se na tensão das necessidades da própria história do ser criado e na autonomia que a liberdade criativa exige.

Meus textos são meus, mas de mim são livres. Meus personagens e versos devem toda sua liberdade à minha criação… mas não me devem nada e, a descrevê-los, eles recebem o que merecem conforme sua própria liberdade, que me parece incontestável.

É um paradoxo sim… um paradoxo que deve sua descrição, em escrita, à experiência de quem também escreve. Quem também tem esse hábito entende que é assim… quem não o tem vai ter que passar batido por esse texto ou tomar minhas palavras pelo que elas dizem. Mas, penso eu, esse paradoxo do escritor também tem raízes mais profundas na experiência espiritual dos homens.

O problema é uma das discussões clássicas da filosofia sobre a liberdade humana face ao poder de Deus. Ele aparece de forma mais ou menos acabada na Grécia tardia, pronunciado pelo filósofo Epícuro:

“O paradoxo ataca a crença das 3 qualidades de Deus nos seguintes termos:

1) Enquanto onisciente e onipotente, tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é benevolente.
2) Enquanto onipotente e benevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é onisciente.
3) Enquanto onisciente e benevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é onipotente.”

Uma das consequências da discussão deste paradoxo, apesar de nele não estar descrita, é a de que, face a um Deus onipotente e onisciente, não existe liberdade humana. Deus sabe o que fizemos no passado e o que faremos no futuro. E como ele nos criou, ele o fez para que fizéssemos exatamente o que ele quis .

Deste modo, religiões, moralidade, bondade são pleonasmos: os bons fazem a vontade de Deus, assim como os maus. A vontade é cega e se desdobra na mera completude dos tempos: este é o melhor dos mundos possíveis (pelo caminho de Leibnitz) ou a materialização da vontade universal (pelo caminho de Hegel). Tudo se destina à completude de um projeto político (pelo caminho de Marx) ou então vagamos no jogo cego da vontade (Freud, Schopenhauer, Nietzsche…)

Se não é assim, é pq Deus não pode impor sua vontade e, não o podendo, ele não é Deus. Esse raciocínio tem muitas ramificações conscientes e inconscientes nas ideologias filosóficas e, consequentemente, nas políticas modernas: nos coloca na dicotomia moderna da teleologia totalitária ou do caos niilista. Mas não leva em consideração um aspecto: o do paradoxo do escritor que apresentei aqui.

Um escritor necessariamente encontra-se fora do tempo. O tempo literário de sua criação é parte da criação. Mesmo nas obras realistas mais “duras”, o recorte descritivo do tempo real é qualitativo, e não quantitativo. O tempo e o clima (cronos e kairos) de uma obra são parte desta e o escritor, enquanto causa eficiente de ambos, encontra-se do lado de fora. E ele não pode penetrar neste espaço. A fronteira para o escritor é intransponível: seus personagens ou versos habitam um espaço que, apesar de intimamente pertencente ao escritor, estará para fora dele e será, uma vez criado, sempre impenetrável.

La dentro, o que acontece é um jogo entre as muitas possibilidades contidas na sensibilidade e na capacidade de expressão do artista. E esse jogo começa de forma guiada, segura, planejada… mas em algum ponto do processo a coisa toma vida própria. Os personagens participam do ser de seu criador, mas como ele não se confundem – eles existem, não são (ex-sistere… aparecimento)

Não consigo imaginar Dostoiévski a escrever friamente as palavras de Aliocha ou Ivan… como em um plano de obra, onde haverá uma catarse com hora marcada. Não consigo imaginar Camus a planejar de forma calculada a explosão de Meursault junto ao capelão ou Wilde fazendo cálculos na produção da Balada do Cárcere de Reading… são potencialidades desses seres que, em momentos de genialidade (um acaso feliz, segundo Nietzsche) irrompem na existência e veem à luz como novidade.

A escrita de valor é escrita com sangue… O sangue aqui é espírito. Mas o sangue que corre nas páginas dos romancistas e poetas não é o deles mesmos. E também não é sangue metafórico, força de expressão. Trata-se da espontaneidade das humanidades reais, expondo situações que tocam a profundidade do ser em situações-limite, catarses e paixões. São liberdades, que dependem de um criador mas que agem apesar da criação. O criador não está no tempo para determinar as escolhas e caminhos, embora possa fazê-lo quando assim o desejar…

Do ponto de vista do personagem, o tempo do escritor é a eternidade. E a intervenção da eternidade do tempo só pode ser considerada milagrosa.

E o que isso tudo tem a ver com o Natal?

Nas palavras do teólogo Hans Urs von Balthasar, “O Natal não é um evento na história, mas a invasão da eternidade do tempo”.

O milagre do Natal passa pelo fato de que o Criador deste mundo faz aquilo que o artista criador de mundos não pode fazer: ultrapassa a barreira dos dois tempos que o separam de sua obra. Deus não apenas se faz homem, entrando na cronologia do nosso mundo enquanto personagem, mas também entra no tempo existencial humano ao viver uma vida humana – nascer, ser cuidado por uma família, aprender, crescer em sabedoria, trabalhar, passar por privações, provações e angústias, dores físicas e morais até experimentar a morte. Ele torna-se personagem de si mesmo e, pelo mesmo expediente, torna todos os personagens autores de si mesmos…

A eternidade invade o tempo e o tempo torna-se eterno… tudo isso porque nasceu uma criança em Belém: O próprio Deus se faz personagem de sua obra. Isso confirma a liberdade dos seres existentes nesta obra. E, ao confirmar tal liberdade, transforma o homem sua vida em uma grande aventura: pois apenas onde há riscos e possibilidades reais há aventura de verdade. Alegrias, dores, angústias, gozos… tudo não previsto por um Deus que limita nossa liberdade, mas sim criado por um Deus que, ao fazê-lo, a possibilita.

Curitiba, dezembro de 2018

O elefante na sala

ou A idade da razão – um problema de fundo nas discussões sobre educação pública.

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Pra mim, todo o problema da educação pública está colocado no dilema do Prof. Mathieu, protagonista do romance A idade da razão, de J-P Sartre: o professor é, ao mesmo tempo, um subversivo e um funcionário. Subversivo pois tenta implementar uma quebra de tradição entre os conhecimentos e ignorâncias que o aluno traz desde suas vivências, e funcionário pq o faz a soldo do poder enquanto trabalha em uma instituição regulamentada e que visa formar súditos e trabalhadores, e não livres pensadores…

O estado, o capital e os partidos já se apropriaram dos questionamentos radicais ideológicos. Esses geram dissensão na sociedade, e a dissensão é boa para o poder. Famílias desfeitas, solidariedades traídas, politização de afetos… tudo isso é vendido como material altamente revolucionário, mas só serve para conformar o indivíduo ao poder. Dividir para governar, alienar… o truque mais velho do mundo, segue sendo repetido pelo poder por um único motivo: ele funciona!

O professor-doutrinador, esse estelionatário, acredita estar formando cidadãos críticos. Na verdade, ele só forma consumidores e empregados. Pensa combater o sistema, enquanto o alimenta… o mundo precisa de mais lacradores! Afinal, os hambúrgueres não se fritam sozinhos! (ainda) Os filhos de famílias desfeitas revoltados “contra tudo que está aí” não tem NENHUMA instância intermediária entre a ação do capital e do estado e a própria existência. Nenhum grupo de apoio, nenhuma ajuda, nenhum patrimônio…

A verdade doída, o elefante na sala, é o seguinte: o poder estabelecido JAMAIS irá manter uma instituição que objetive sua crítica e superação. A educação pública, nos termos sonhados pelos doutrinadores de plantão, é uma contradição em termos… o aprendizado é autodidata, mesmo quando ocorre em sala de aula. Bons professores guiam nesse processo os (muitas vezes poucos) interessados.

Qualquer coisa além disso é subserviência.

 

Curitiba, novembro de 2018

O meteorito (terror da história)

Sobre o Museu Nacional…

Acabei de ler que dois meteoritos expostos desde 1891(!) sobreviveram ao incêndio. As condições de sua chegada ao país foram mais traumáticas do que as de um mero incêndio. Fósseis com milhões de anos, múmias com milhares, obras de arte e arquitetura com centenas não tiveram a mesma sorte…

Apagamos, em uma única noite, uma página imensa da história do Brasil. A cabeça do T-rex, as múmias articuladas, a Luzia, estrela das exposições dos 500 anos do Brasil!!! Me lembro das filas quilométricas para a exibição do molde de seu crânio na exposição Br500 no Ibirapuera em 2000. Tudo isso virou cinzas… Itens que, na natureza, duraram milhões de anos, não foram páreos para a barbárie do estado e do povo brasileiro.

Isso me faz pensar no meteorito… ao saber da sua sobrevivência, não pude deixar de pensar que seria poético seu retorno ao espaço. Que essa rocha retome seu rumo orbital ou errante no cosmos. Que ela volte a se chocar contra a Terra algum dia – isso vai acontecer mesmo, mais cedo ou mais tarde seremos atingidos por um meteoro… mas seria justo e poético que ESSE meteorito fizesse o serviço, que ELE voltasse para apagar da existência essa civilização de gente invejosa e mesquinha.

Certamente a cultura do resto do mundo não sentirá falta de nós, até pq boa parte daquilo que tínhamos por legado foi queimado hoje. Sem futuro, agora também não temos mais passado… estamos todos presos numa perspectiva de eterno presente, de terror da história.

A expressão “terror da história” é de Mircea Eliade. Ele fala dos povos que, desligados de suas perspectivas tradicionais, de seu lugar do mundo, de seu centro e elán, vagam pelo mundo desesperados pela falta de sentido de uma existência que, ao vir de lugar algum, também a nada se dirige. Resta o presente. Cumprir obrigações e rotinas a troco de nada. Viver para sobreviver, sem esperança, sem necessidade, sem um telos.

Vemos isso todos os dias… no desespero dos good vibes e carpe diem, na violência reinante, na barbárie da mídia e da política. E é triste… pq eu vivo aqui, pq meus filhos vão crescer aqui. O terror da história é torcer contra a vinda do meteorito, mas secretamente esperar sua chegada.

Armas e direitos humanos

Um argumento pelo reconhecimento ao direito de possuir e portar armas.

Uma das causas que me são caras dentre as em pauta nas discussões dos últimos tempos é a do armamento civil. E, na minha opinião, há um grande desvio de escopo quando se trata do assunto. Os desarmamentistas afirmam que o direito ao porte de arma não é solução para o problema da (in)segurança pública.

Pois bem… nesse aspecto, eles estão corretos.

O direito a andar armado não está fundamentalmente relacionado à criminalidade ou a sua ausência. Trata-se antes de mais nada de uma questão de liberdades civis e de exercício de direitos e deveres previstos moral e legalmente.

Todos os códigos morais e legais vigentes reconhecem o direito à vida e a autodefesa. Da Bíblia e do Catecismo da Igreja até a Declaração Universal de Direitos do Homem, todos são categóricos na afirmação de que cada ser humano, por sua dignidade inata, tem direito à vida, ao patrimônio e à liberdade de trabalho, pensamento, expressão e religião.

Do mesmo modo, a legislação civil e a moralidade obrigam o cuidado dos mais fracos pelos mais fortes. Pais exercem o poder familiar, direito/dever de zelo pelos filhos. Além disso, quem tem condições de evitar um crime e não o faz é moral e, em certas circunstâncias, criminalmente responsável pelo resultado.

Os maiores devem proteger os menores. Os mais fortes devem proteger os mais fracos e todos têm o direito e a obrigação de proteger a si mesmos, aos frutos do seu trabalho e às prerrogativas de suas liberdades pessoais.

Tudo isso me faz perguntar: como exercer todos esses direitos e obrigações sem deter os meios materiais para isso??? Como proteger a própria vida contra indivíduos armados sem também manejar uma arma? Como proteger meu patrimônio ou família sem poder reagir contra quem lhes atenta??? É daí que vem a necessidade de que o porte e a posse de armas sejam lícitos e mesmo incentivados.

O porte e a posse de armas são condições objetivas para o exercício de diversos direitos civis. Um direito que não pode ser exercido não é um direito, mas só um discurso na boca de algum político. Direitos, no mundo real, têm efetividade, e apenas a condição de igualar ou superar um agressor em força assegura o direito à vida, a proteção do patrimônio e da liberdade, o exercício do poder familiar e obrigação moral de cuidar dos mais fracos. Simples assim.

Não se trata de mera reação à problemas de segurança pública. Aliás, é bem possível que, com a revogação do ilegítimo estatuto os índices de homicídios aumentem em um primeiro momento – afinal, não serão apenas os criminosos que estarão atirando durante a prática de crimes. Mas e daí? Talvez seja esse um preço a ser pago por algo que vale mais do que uma pretensa segurança que o estado, ainda mais no Brasil, é incapaz de entregar.

No médio e longo prazo, os índices devem cair – afinal, o custo de oportunidade da prática de crimes sobe com a certeza da reação armada por parte das vítimas. Mas essa é uma vantagem lateral apenas. O argumento é o do exercício dos direitos humanos mais fundamentais, que são o da própria vida, da autodefesa, da proteção dos filhos e dos mais fracos. Nenhuma consideração de ordem política tem mais valor do que tais valores, pois são eles que fundam a própria ordem política.

Agosto de 2018