Birdman, ou a libertação

O texto contém spoilers… aliás, o texto inteiro é um comentário sobre o final do filme. Sugiro que quem ainda não assistiu Birdman o faça antes de ler esse texto, ou que pelo menos não fique bravo comigo caso eu estrague alguma surpresa referente ao filme!!!

ator e personagem

Existe uma dificuldade de origem, de raiz, na comunicação humana. Grosso modo, nos dividimos entre quem de fato somos (physis e psiche), quem pensamos que somos (persona) e naquilo que os outros veem quando interagem conosco (imagem projetada). Quando projetamos uma persona, estamos limitados pelas nossas possibilidades físicas e psicológicas. E tal projeção é acolhida conforme as possibilidades físicas e psicológicas (e também afetivas) dos outros. O esforço de afirmação de uma personalidade é, portanto, a da constante luta entre a imagem que fazemos de nós mesmos, aquilo que realmente somos e onde estão contidas as nossas potencialidades e a forma de projeção de tais potencialidades para os outros.

Birdman narra a história de… birdman… um super-heroi de um blockbuster dos anos 90 que vive aprisionado no corpo de um ator, Riggan Thomson (Michael Keaton, o batman dos primeiros filmes, numa atuação genial e que merecia a estatueta). Todo o filme tenta nos enganar ao mostrar o contrário, e induz a ideia de que estamos na narrativa de Thomson, ator excêntrico que se recusou a prosseguir no cinema industrial de Hollywood em troca de uma ego-trip de autoafirmação na Broadway.

O conflito arte x indústria, LA x NY, dinheiro x espírito materializa-se na tela, aparentemente da maneira convencional dos filmes de arte patrocinados ou distribuídos pelos grandes estúdios –  como discurso híbrido da má-consciência do “artista vendido”  e como crítica do mercado das mega produções, enquanto nostalgia de uma arte mais pura, que privilegia o talento e a simplicidade. Thomson carrega o ressentimento de não ser reconhecido como o grande ator que ele acredita ser. Sua persona e sua imagem (ou o que ele pensa que é sua própria imagem) divergem, enquanto ambas são atormentadas pela presença de Birdman. A peça de Thomson só tem plateia por causa de sua fama em blockbusters… a crítica só se incomoda com sua presença na Broadway por causa de seu passado em Hollywood. Sua persona envergonha-se de seu verdadeiro ser e quer tornar-se outra coisa. Mas isso é possível?

Pois afinal, Thomson é a persona de Birdman. Quem de fato existe é o super-herói, que plana alto pelos céus, salva o mundo com sua roupa de borracha e suas asas de alumínio. Um super-herói precisa de uma identidade secreta, como o Batman tem Bruce Wayne e o Super-homem Clark Kent. Não sei se já escreveram sobre conflitos de personalidade heroica, mas certamente há uma divisão entre a esfera do jornalista pacato e a do homem de aço, assim como entre a do playboy fanfarrão e a do homem morcego. Não se trata apenas de um disfarce, mas de uma cisão – o preço de normalidade que os seres superiores pagam pelo convívio com as pessoas normais, uma vez que a existência de heróis é exceção e não regra e que o heroísmo os alçaria a uma sempre presente solidão.

Birdman explora esse problema. Um herói de verdade consegue viver sem conflitos uma vida normal? Consegue carregar a máscara da vulgaridade sem sentir-se abafado por ela? Todos pensam que os heróis se mascaram quando vão enfrentar o crime. Tal visão é errônea: a máscara é o terno. O homem com visão de raio-x e lasers esconde-se atrás dos óculos. O alter-ego é construído com um caráter dúplice: ao mesmo tempo ele permite a comunicação e o convívio do herói com as pessoas comuns e o protege desse convívio. Ele é, ao mesmo tempo, normalidade e anormalidade. Mas, o tempo todo, ele é falsidade, compromisso, diluição. Quem existe de verdade é o Batman. É o super-homem. É Birdman.

E Birdman sucumbe a essa pressão. Elimina sua persona no ato que seria o da consagração dela. Impede a conquista da imagem que a persona queria. No palco, na Broadway, no momento que seria o da afirmação da arte reconhecida, ilustrada, elitista à qual sua persona almejava – e que não poderia estar mais distante do seu verdadeiro ser – Thomson atira em si mesmo, tentando remover o que seria o bico de Birdman. Uma revolta do personagem contra o ator na verdade revela-se a eliminação do personagem e a afirmação do ator. O rosto de Thomson – máscara que reprime Birdman – é dilacerado na frente de todos aqueles que Thomson queria enganar quando posava de ator talentoso na Broadway.

Mas as máscaras são necessárias para os heróis. Birdman vive seu auge antes de sua libertação, mas não pode viver depois dela. Como eu disse, é o preço que os heróis pagam para conviverem no mundo. Birdman sucumbe e se liberta, da forma preferida pelos homens-pássaros de todos os tempos: voa pela janela do hospital.